Desmembramento de um semicírculo
Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme.
Matilde Campilho
sexta-feira, 9 de maio de 2014
Visões luso-brasileiras
A vantagem de não viver no Brasil é que à boa maneira portuguesa se pode viver num país e ter saudades de outro, estar aqui e acolá ao mesmo tempo, corpo de um lado e esperança no outro, sol aqui e tropicalismo lá. Divisões unificadas pela lingua, pela visão antagónica do mundo, aqui triste e em tons pastel, lá rejubilante e gargalhável. Visão do passado e de um futuro, no presente aqui, entre cá e lá.
quinta-feira, 8 de maio de 2014
Would we have Lucy in the Sky with Diamonds had the Beatles not taken LSD?
http://blogs.scientificamerican.com/mind-guest-blog/2013/11/22/creativity-madness-and-drugs/
Eu não Quero o Presente, Quero a Realidade
Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
No Rush
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
quarta-feira, 7 de maio de 2014
Pessoa em prosa
1- Alma e Realidade, Duas Paisagens Sobrepostas - Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que «na ausência da amada o sol não brilha», e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Têm de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]
Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'
2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que «na ausência da amada o sol não brilha», e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Têm de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]
Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'
Que maçada!
(...)
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Fernando Pessoa
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Fernando Pessoa
Cuidado. Pensar mata.
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu. (Acho tão Natural que não se Pense)
Fernando Pessoa
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu. (Acho tão Natural que não se Pense)
Fernando Pessoa
Deus fala ao ouvido do pequeno ser
É que tudo já me parece perdido,
desprovido de uma energia potencial que
sarando todas feridas,
cura mentes e dá sentido.
Nesse propósito vê-se a dinâmica, o movimento,
(já não estrelar e dependente do astrolábio)
aquele que vai de lá para cá e de cá para lá e se prende na ponta do pêndulo até bater na parede. Pum!
Rumou a outra banda e pensou - já não o fazia há algum tempo, agora que pensa nisso... - e aí ponderou, até deixar de sentir e ter as visceras acesas que ajudam a decidir.
Só essas importam, só essas dão a coragem e o batuque da partida que ajuda a largar.
Ainda aí estás? Ainda bem!
Dizia,
Agora que esse maldito pêndulo se soltou,
na boca de um batráquio ruminante (daqueles que comem metais)
- delirou!
Oh não, pensou.
É igualmente terrivel, diz Deus ao ouvido do homem presumido.
Crescei, crescei ó tenras criaturas.
Deixai a cabeça e usai o que vos dei.
Partiu-se? Como assim? Não era de carne?
Pois, lição divina nº1 - a carne regenera. "Não separe o homem o que Deus uniu".
Integrai-vos.
Tudo em um e um em tudo.
desprovido de uma energia potencial que
sarando todas feridas,
cura mentes e dá sentido.
Nesse propósito vê-se a dinâmica, o movimento,
(já não estrelar e dependente do astrolábio)
aquele que vai de lá para cá e de cá para lá e se prende na ponta do pêndulo até bater na parede. Pum!
Rumou a outra banda e pensou - já não o fazia há algum tempo, agora que pensa nisso... - e aí ponderou, até deixar de sentir e ter as visceras acesas que ajudam a decidir.
Só essas importam, só essas dão a coragem e o batuque da partida que ajuda a largar.
Ainda aí estás? Ainda bem!
Dizia,
Agora que esse maldito pêndulo se soltou,
na boca de um batráquio ruminante (daqueles que comem metais)
- delirou!
Oh não, pensou.
É igualmente terrivel, diz Deus ao ouvido do homem presumido.
Crescei, crescei ó tenras criaturas.
Deixai a cabeça e usai o que vos dei.
Partiu-se? Como assim? Não era de carne?
Pois, lição divina nº1 - a carne regenera. "Não separe o homem o que Deus uniu".
Integrai-vos.
Tudo em um e um em tudo.
Iguaçu
Saudades malucas de um tempo perdido,
só visto em mim.
Tu que lá estavas
tão presente,
tão em Ti e mim,
fascinio total,
perdição dos sentidos,
ó Tu, ficaste ali?!
Iguaçu, força bruta,
maravilha dos astros conspirantes,
reboliço, salpicos e sons de um outro mundo.
Mundo que abriste em mim,
Livre de pressas, livre de passos,
solta ao ar, só de Ti, minha prisão.
E agora ver-te aí,
tão longe, tão livre de mim,
aperta-me na saudade de um dia,
que me pareceu a eternidade.
Beleza pura de um tempo perdido
Nada interessa nada,
Nada é tudo
e tudo é vão.
Via Láctea do tempo
infinito, perdido nos ares,
há quem o pare?
Há quem diga o que vale?
Vale nada!
E nada sobre nada é tudo
aquilo que nos resta.
O melhor salto, maior liberdade,
Rumo a lado nenhum.
Nada é tudo
e tudo é vão.
Via Láctea do tempo
infinito, perdido nos ares,
há quem o pare?
Há quem diga o que vale?
Vale nada!
E nada sobre nada é tudo
aquilo que nos resta.
O melhor salto, maior liberdade,
Rumo a lado nenhum.
WISLAWA SZYMBORSKA
Autotomia
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
segunda-feira, 5 de maio de 2014
sexta-feira, 2 de maio de 2014
"you were the best of all my days"
ANIMALS
Have you forgotten what we were like then
when we were still first rate
and the day came fat with an apple in its mouth
it's no use worrying about Time
but we did have a few tricks up our sleeves
and turned some sharp corners
the whole pasture looked like our meal
we didn't need speedometers
we could manage cocktails out of ice and water
I wouldn't want to be faster
or greener than now if you were with me O you
were the best of all my days
Frank O`Hara
Have you forgotten what we were like then
when we were still first rate
and the day came fat with an apple in its mouth
it's no use worrying about Time
but we did have a few tricks up our sleeves
and turned some sharp corners
the whole pasture looked like our meal
we didn't need speedometers
we could manage cocktails out of ice and water
I wouldn't want to be faster
or greener than now if you were with me O you
were the best of all my days
Frank O`Hara
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